Eu já não
compreendia fazia muito tempo. Desde
o dia em que tive consciência que tinha consciência, acredito. É verdade que eu me esforçava para deixar passar
essa incompreensão, para esquecer-me dela como quem vendo aquele que lhe causou
traição, e, ainda amando-o, finge não ver. Pigarreia, ajeita a roupa e, de
repente, não mais que de repente, assume a estatura soberana de não notar sua
presença: mentira! Às vezes, eis a ordem da vida: fingir ser, não ver,
fazer, esquecer. Esforçava-me para manter a pose e, como todo mundo,
parecer normal. Tudo bem: menos louco! E, ainda, para deixar a ordem do mundo
seguir por si mesma, em paz. Tenho um defeito quase irremediável: de
alterar, ou ajustar, ou ainda tentar justificar as coisas. Tudo tem
que ser a minha maneira porque, em mim,eu sou o mundo. Digo, assim,
quase irremediável porque, ultimamente, tenho aprendido o hábito, que tem se
tornado ofício, da mordaça. Eu faço análise três vezes na semana para aprender
a censurar-me. Especificamente essa minha vontade absurda de tirar o véu da
face da verdade em público. Sou como a criança ainda inocente: se
demoram a dar-me o que peço, eu pranteio, de puro protesto, de verdadeiro
cólera. E, em seguida, não quero mais. Se eu implorar demais um desejo, perco a
vontade de possuí-lo. Por isso deixo a vida ser e ela deixa-me ser, é
simples. Como na era das admissões, do falar na cara do perigo, ou ainda
afugentar a fera que dorme plácida seu sono pós-janta eu cheguei ao meu limite.
Gritei: “Chega! Vai ser agora”. Naquela manhã , uma manhã de 17 de outubro,
fora a gota d’agua, meu estopim, meu grito de guerra. O romper de meus diques.
Recorri ao dicionário, como quem apressado na incredulidade, uma incredulidade
inocente, verifica pela infinita vez se o bilhete lotérico que possui nas mãos
é mesmo o bilhete que acabara de ser premiado. O dicionário apenas reforçou
aquilo que eu tanto suspeitei. E, confesso, que o dicionário não me ajudou,
apesar de constatar aquilo que eu sempre suspeitara do termo. Dizia, em termos
simplificados: Parabéns - Felicitações, congratulações, que significam
cumprimentos dirigidos a alguém por alguma coisa: parabéns pelo seu
aniversário. Observe meu dilema, Gregório, e seja franco comigo como
você sempre fora ao longo desses trinta anos de amizade. O termo significa que,
o ato de alguém enunciar para outro votos de parabéns, o mesmo está
felicitando-o(s.f. Ação ou efeito de felicitar (-se), de cumprimentar (-se).
s.f.pl. Dar cumprimentos, dirigir os parabéns a alguém: festa de felicitação
pelo aumento de salário). Sim, Gregório, sou capaz de compreender os
códigos e significados, não me subestime. Porém, o fato de eu ser capaz de
compreender, não condiz com o fato de eu ter que aceitar. Na intenção
eu sei que há quem mate por legítima defesa, há quem não vá por esquecimento,
há quem maltrate alegando que ama. O ato em si não justifica a ação, apenas a
esclarece. Pois eu tentei, juro! Tentei aceitar para não ser sempre o
especulador. Como dizem popularmente: aquele que está sempre remando contra a
maré. Mas se eu remo contra essas águas que me arrastam, Greg, entenda-me, é
por necessidade vital, de permanecer vivo. Tentei acreditar, voraz, como aquele
que tem fé genuína e natural, por um triz eu não me confundia com as ovelhas
diante do rebanho, e, por um triz, eu não atingia a patente de ser mais crente
que o crente antigo. O que me diferenciava dos demais era o fato de eu ser
alguém puramente instintivo. Com grande tendência a me libertar de tudo que a
mim se revelasse cadeia. Será que morrerei no átrio de Deus? Deitado no seu
colo enquanto Ele me faz cafuné? Será que anjos virão, em coros, buscar meu
espírito para habitar, enfim, em casa? Estarei eu e Deus, ao longo da
existência, um fazendo companhia ao outro na solidão da velhice? Penso
que sim, e tremo. Admito, Gregório, não compreendo o porquê das pessoas me
parabenizarem pelo dia do meu aniversário. Eu compreendo placidamente quando me
parabenizam por ter passado no exame de vestibular, quando comprei aquela casa
da quinta avenida ou quando sou promovido no meu emprego. Porque tudo isso,
Greg, é edificado a partir de meus esforços. Mas existir em nada, absolutamente
nada, me compete. Parabenizem a minha mãe por permitir a gestação, aos deuses
por inventarem minha existência, ou a natureza dos átomos e células. Enquanto
pessoa sou um fenômeno puramente natural. A não ser que essas pessoas
estejam me parabenizando pelo fato de eu estudar, tomar regularmente sol, ter
amigos, amores, família. Pagar os impostos em dia. Ser honesto. Respeitar os
semáforos. Parar antes da faixa de pedestre. Ser um cidadão
politicamente-impostamente-correto. É, Gregório, acredito que, enfim,
depois de tantos anos entendi: as pessoas parabenizam umas as outras não pelo
que são intrinsecamente, mas por aquilo que elas permitem vir à tona, que
permitem que sejam conhecidos. Qualquer maquiagem serve. Até porque a vida,
pras pessoas, é muito urgente para se perder tempo com autênticos cortejos. No
mais existem as lojas de conveniências que mandam o presente a gosto, e as
confeitarias que fazem encantados bolos para todos tipos de gostos e
tendências. Sendo assim, como manda a etiqueta, eu digo-vos: grato! Paz na
terra entre os homens de boa e má fé. E eis o que a vida é. E,
sim, Gregório! Isso que te falo está longe de ser uma crítica social, ou
tampouco um desabafo: antes é um acalento. Uma virgem
canção de ninar.
[Ozzi Cândido-
A história de que a-maré-é-simples. Contos revisados e distribuídos.
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janeiro de 2010]