23 de outubro de 2012

Dia de aniversário.




Eu já não compreendia fazia muito tempo. Desde o dia em que tive consciência que tinha consciência, acredito. É verdade que eu me esforçava para deixar passar essa incompreensão, para esquecer-me dela como quem vendo aquele que lhe causou traição, e, ainda amando-o, finge não ver. Pigarreia, ajeita a roupa e, de repente, não mais que de repente, assume a estatura soberana de não notar sua presença: mentira! Às vezes, eis a ordem da vida: fingir ser, não ver, fazer, esquecer. Esforçava-me para manter a pose e, como todo mundo, parecer normal. Tudo bem: menos louco! E, ainda, para deixar a ordem do mundo seguir por si mesma, em paz. Tenho um defeito quase irremediável: de alterar, ou ajustar, ou ainda tentar justificar as coisas. Tudo tem que ser a minha maneira porque, em mim,eu sou o mundo. Digo, assim, quase irremediável porque, ultimamente, tenho aprendido o hábito, que tem se tornado ofício, da mordaça. Eu faço análise três vezes na semana para aprender a censurar-me. Especificamente essa minha vontade absurda de tirar o véu da face da verdade em público. Sou como a criança ainda inocente: se demoram a dar-me o que peço, eu pranteio, de puro protesto, de verdadeiro cólera. E, em seguida, não quero mais. Se eu implorar demais um desejo, perco a vontade de possuí-lo. Por isso deixo a vida ser e ela deixa-me ser, é simples. Como na era das admissões, do falar na cara do perigo, ou ainda afugentar a fera que dorme plácida seu sono pós-janta eu cheguei ao meu limite. Gritei: “Chega! Vai ser agora”. Naquela manhã , uma manhã de 17 de outubro, fora a gota d’agua, meu estopim, meu grito de guerra. O romper de meus diques. Recorri ao dicionário, como quem apressado na incredulidade, uma incredulidade inocente, verifica pela infinita vez se o bilhete lotérico que possui nas mãos é mesmo o bilhete que acabara de ser premiado. O dicionário apenas reforçou aquilo que eu tanto suspeitei. E, confesso, que o dicionário não me ajudou, apesar de constatar aquilo que eu sempre suspeitara do termo. Dizia, em termos simplificados: Parabéns - Felicitações, congratulações, que significam cumprimentos dirigidos a alguém por alguma coisa: parabéns pelo seu aniversário. Observe meu dilema, Gregório, e seja franco comigo como você sempre fora ao longo desses trinta anos de amizade. O termo significa que, o ato de alguém enunciar para outro votos de parabéns, o mesmo está felicitando-o(s.f. Ação ou efeito de felicitar (-se), de cumprimentar (-se). s.f.pl. Dar cumprimentos, dirigir os parabéns a alguém: festa de felicitação pelo aumento de salário). Sim, Gregório, sou capaz de compreender os códigos e significados, não me subestime. Porém, o fato de eu ser capaz de compreender, não condiz com o fato de eu ter que aceitar. Na intenção eu sei que há quem mate por legítima defesa, há quem não vá por esquecimento, há quem maltrate alegando que ama. O ato em si não justifica a ação, apenas a esclarece. Pois eu tentei, juro! Tentei aceitar para não ser sempre o especulador. Como dizem popularmente: aquele que está sempre remando contra a maré. Mas se eu remo contra essas águas que me arrastam, Greg, entenda-me, é por necessidade vital, de permanecer vivo. Tentei acreditar, voraz, como aquele que tem fé genuína e natural, por um triz eu não me confundia com as ovelhas diante do rebanho, e, por um triz, eu não atingia a patente de ser mais crente que o crente antigo. O que me diferenciava dos demais era o fato de eu ser alguém puramente instintivo. Com grande tendência a me libertar de tudo que a mim se revelasse cadeia. Será que morrerei no átrio de Deus? Deitado no seu colo enquanto Ele me faz cafuné? Será que anjos virão, em coros, buscar meu espírito para habitar, enfim, em casa? Estarei eu e Deus, ao longo da existência, um fazendo companhia ao outro na solidão da velhice? Penso que sim, e tremo. Admito, Gregório, não compreendo o porquê das pessoas me parabenizarem pelo dia do meu aniversário. Eu compreendo placidamente quando me parabenizam por ter passado no exame de vestibular, quando comprei aquela casa da quinta avenida ou quando sou promovido no meu emprego. Porque tudo isso, Greg, é edificado a partir de meus esforços. Mas existir em nada, absolutamente nada, me compete. Parabenizem a minha mãe por permitir a gestação, aos deuses por inventarem minha existência, ou a natureza dos átomos e células. Enquanto pessoa sou um fenômeno puramente natural. A não ser que essas pessoas estejam me parabenizando pelo fato de eu estudar, tomar regularmente sol, ter amigos, amores, família. Pagar os impostos em dia. Ser honesto. Respeitar os semáforos. Parar antes da faixa de pedestre. Ser um cidadão politicamente-impostamente-correto. É, Gregório, acredito que, enfim, depois de tantos anos entendi: as pessoas parabenizam umas as outras não pelo que são intrinsecamente, mas por aquilo que elas permitem vir à tona, que permitem que sejam conhecidos. Qualquer maquiagem serve. Até porque a vida, pras pessoas, é muito urgente para se perder tempo com autênticos cortejos. No mais existem as lojas de conveniências que mandam o presente a gosto, e as confeitarias que fazem encantados bolos para todos tipos de gostos e tendências. Sendo assim, como manda a etiqueta, eu digo-vos: grato! Paz na terra entre os homens de boa e má fé. E eis o que a vida é. E, sim, Gregório! Isso que te falo está longe de ser uma crítica social, ou tampouco um desabafo: antes é um acalento. Uma virgem canção de ninar.


[Ozzi Cândido-  A história de que a-maré-é-simples. Contos revisados e distribuídos. Todos os direitos reservados a Editorial Emporio das ideias LTDA. Recife 20 de janeiro de 2010]

16 de julho de 2012

ESSE É MEU CORPO: COMEI DE MIM.

    


     O padeiro amassava a massa com força e com as mãos nuas. Em seus dedos restavam vestígios da massa, pedaços de seu corpo. Com brutal violência, como quem come ardentemente o corpo desejado da mulher alheia, o padeiro executava com concentração sacra seu ofício. Ele amassava a massa com desprezo. Com sincero e paterno amor. Só faltava cuspir a massa. Rasgar-lhe o vestidinho de renda cheio de flores campestres que só se percebia de perto e que ela tinha ganhado de presente de natal. Nela ele exercia toda a sua violência, sua fúria masculina quando é incitado pelas curvas de uma mulher. Suas mãos gritavam em gritos selvagens a indiferença da vida. Depois de um amor paterno e calmo, voltou a odiá-la. Fez as pazes. Deixou seu suor cair na massa pálida e disforme: a massa estava fria, morta: tão morta quanto uma virgem morta. Ele e a massa eram um só depois que seu sêmen, escorrido de seu rosto, pingou na massa e a fecundou. Depois desse ato de violentar a massa e depositar em seu ventre seu sêmen, o padeiro jamais deixaria de ser padeiro. Nem voltaria a olhar para outra mulher além da massa que possua placidamente nua e pálida sobre o mármore. Cativa de seu homem. Ela sentiu-se mais humana que o padeiro. A massa que se transformaria numa meretriz, comida pelas bocas alheias, em fatias, tinha, depois de transar com o padeiro, petulância humana. Era orgulhosa, arrogante, prepotente. O padeiro amava agora a massa como uma amante, como uma meretriz que o conquistara com a quentura de seus quadris se movendo freneticamente sobre sua pélvis até que ele enlouquecido gozasse em seu ventre. Levava-lhe flores e depositava numa garrafa ao lado do balcão de mármore onde iria manipular com as mãos a massa até que esta atingisse, com grunhidos escandalosos, como gatos no cio no telhado, o orgasmo. O padeiro penetrou a massa com as mãos e rasgou-lhe a roupa branca encardida, rasgou-lhe a carne, rasgou até a face que ela ainda não possuía, a meros olhos. A face da massa era a própria massa deitada na chapa de mármore, nua, pálida – mulher. Ora envergonhada com a sua nudez, ora louca de excitação pelo padeiro. Quando ele chegava, a massa de esparramava sobre o mármore, e trêmula de desejo, como uma adolescente recém desvirginada e com fome de seu primeiro namoradinho, esperava pelas mãos do padeiro a manipular seu corpo. Mas houve um dia que o padeiro traiu gravemente a massa. Preparou o forno e depositou o corpo da massa, inocente, sobre a chapa de alumínio. A massa até sentia-se como uma mulher:
- Sim, é hoje. Hoje ele me levará em um piquenique. Hoje ele me levará para conhecer seus pais. Hoje ele me assumirá diante dos amigos e inimigos. Pensava a massa, e a felicidade fazia-lhe o estômago contorcer-se de alegria. O padeiro abriu o forno e depositou o corpo da massa no centro. Depositou com amargura, com respeito, com saudade, como quem deposita o corpo morto de sua amada. Se a massa tivesse face, teria naquele momento uma expressão rubra de horror. Mas o que mais iria doer no padeiro não era sua face apavorada. Seria sua cara de mulher traída. Mulher que amou até as últimas consequências da dedicação o seu homem. O padeiro virou o rosto e saiu da sala aos prantos. A massa assou e transformou-se num pão para a ceia de páscoa. Na noite em que serviram o corpo dela em uma bandeja de prata autêntica a massa que antes era fêmea, agora era um pão, másculo, viril. Tão musculoso quanto um búfalo velho. O fermento da vida deu-lhe órgãos genitais de homem. O padeiro escondeu-se atrás da cortina a olhar sua amada sendo cobiçada por outros homens. Sentiu tristeza, mais do que ódio. Sua amada sendo cobiçada pelos olhos excitados e cafajestes daqueles bárbaros ao redor da mesa. O padeiro sentiu-se excitado também, e reprovou-se, com asco. O homem mais bárbaro e que parecia o líder do bando ergueu o pão, como quem fazia uma prece e depositando-o de volta a mesa todos se lançaram sobre o corpo da massa e comeram-na com fome animal. Foi um verdadeiro estupro coletivo, a massa que ainda era ingênua e virgem, e que se guardou para ser desvirginada por seu amado e que agora a vida havia lhe transformado em macho foi morta pela fome sexual daqueles homens. O padeiro então juntou as migalhas aos prantos e fez um digno velório. Só ele conduziu o enterro. A cidade o condenava por ter permitido que fizessem aquela barbaridade contra a massa. Ele jamais voltou a ter paz, jamais amou outra mulher. E só manipulava a massa que seria o pão, com as mãos vestidas em luvas. Que era para não trair a memória de sua amada.

- Recife, 13 de julho de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2007.