16 de julho de 2012

ESSE É MEU CORPO: COMEI DE MIM.

    


     O padeiro amassava a massa com força e com as mãos nuas. Em seus dedos restavam vestígios da massa, pedaços de seu corpo. Com brutal violência, como quem come ardentemente o corpo desejado da mulher alheia, o padeiro executava com concentração sacra seu ofício. Ele amassava a massa com desprezo. Com sincero e paterno amor. Só faltava cuspir a massa. Rasgar-lhe o vestidinho de renda cheio de flores campestres que só se percebia de perto e que ela tinha ganhado de presente de natal. Nela ele exercia toda a sua violência, sua fúria masculina quando é incitado pelas curvas de uma mulher. Suas mãos gritavam em gritos selvagens a indiferença da vida. Depois de um amor paterno e calmo, voltou a odiá-la. Fez as pazes. Deixou seu suor cair na massa pálida e disforme: a massa estava fria, morta: tão morta quanto uma virgem morta. Ele e a massa eram um só depois que seu sêmen, escorrido de seu rosto, pingou na massa e a fecundou. Depois desse ato de violentar a massa e depositar em seu ventre seu sêmen, o padeiro jamais deixaria de ser padeiro. Nem voltaria a olhar para outra mulher além da massa que possua placidamente nua e pálida sobre o mármore. Cativa de seu homem. Ela sentiu-se mais humana que o padeiro. A massa que se transformaria numa meretriz, comida pelas bocas alheias, em fatias, tinha, depois de transar com o padeiro, petulância humana. Era orgulhosa, arrogante, prepotente. O padeiro amava agora a massa como uma amante, como uma meretriz que o conquistara com a quentura de seus quadris se movendo freneticamente sobre sua pélvis até que ele enlouquecido gozasse em seu ventre. Levava-lhe flores e depositava numa garrafa ao lado do balcão de mármore onde iria manipular com as mãos a massa até que esta atingisse, com grunhidos escandalosos, como gatos no cio no telhado, o orgasmo. O padeiro penetrou a massa com as mãos e rasgou-lhe a roupa branca encardida, rasgou-lhe a carne, rasgou até a face que ela ainda não possuía, a meros olhos. A face da massa era a própria massa deitada na chapa de mármore, nua, pálida – mulher. Ora envergonhada com a sua nudez, ora louca de excitação pelo padeiro. Quando ele chegava, a massa de esparramava sobre o mármore, e trêmula de desejo, como uma adolescente recém desvirginada e com fome de seu primeiro namoradinho, esperava pelas mãos do padeiro a manipular seu corpo. Mas houve um dia que o padeiro traiu gravemente a massa. Preparou o forno e depositou o corpo da massa, inocente, sobre a chapa de alumínio. A massa até sentia-se como uma mulher:
- Sim, é hoje. Hoje ele me levará em um piquenique. Hoje ele me levará para conhecer seus pais. Hoje ele me assumirá diante dos amigos e inimigos. Pensava a massa, e a felicidade fazia-lhe o estômago contorcer-se de alegria. O padeiro abriu o forno e depositou o corpo da massa no centro. Depositou com amargura, com respeito, com saudade, como quem deposita o corpo morto de sua amada. Se a massa tivesse face, teria naquele momento uma expressão rubra de horror. Mas o que mais iria doer no padeiro não era sua face apavorada. Seria sua cara de mulher traída. Mulher que amou até as últimas consequências da dedicação o seu homem. O padeiro virou o rosto e saiu da sala aos prantos. A massa assou e transformou-se num pão para a ceia de páscoa. Na noite em que serviram o corpo dela em uma bandeja de prata autêntica a massa que antes era fêmea, agora era um pão, másculo, viril. Tão musculoso quanto um búfalo velho. O fermento da vida deu-lhe órgãos genitais de homem. O padeiro escondeu-se atrás da cortina a olhar sua amada sendo cobiçada por outros homens. Sentiu tristeza, mais do que ódio. Sua amada sendo cobiçada pelos olhos excitados e cafajestes daqueles bárbaros ao redor da mesa. O padeiro sentiu-se excitado também, e reprovou-se, com asco. O homem mais bárbaro e que parecia o líder do bando ergueu o pão, como quem fazia uma prece e depositando-o de volta a mesa todos se lançaram sobre o corpo da massa e comeram-na com fome animal. Foi um verdadeiro estupro coletivo, a massa que ainda era ingênua e virgem, e que se guardou para ser desvirginada por seu amado e que agora a vida havia lhe transformado em macho foi morta pela fome sexual daqueles homens. O padeiro então juntou as migalhas aos prantos e fez um digno velório. Só ele conduziu o enterro. A cidade o condenava por ter permitido que fizessem aquela barbaridade contra a massa. Ele jamais voltou a ter paz, jamais amou outra mulher. E só manipulava a massa que seria o pão, com as mãos vestidas em luvas. Que era para não trair a memória de sua amada.

- Recife, 13 de julho de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2007.

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