14 de julho de 2012

MÃES DO GUETO.


No tempo que antecedia a existência um ponto negro pariu uma mulher, e deu-lhe o nome de mulher. Essa mulher vivia sozinha, triste, negra. Então o breu pensou – e depois haveria de arrepender-se por toda sua existência - que seria melhor dar-lhe uma companhia, e a fez cair em sono profundíssimo, assim nasceu o outro ser: deu-lhe útero, vagina macia, uma fome inesgotável de ser possuída e amada, e o breu deu-lhe o nome de macho. Enamoraram-se, na obrigação do amor, na escassez de escolhas. O tempo inteiro transavam: com os olhos, com o cheiro, com o sexo, com as arestas dos dedos e pés. Dormindo transavam, acordados transavam – não transando, transavam. E de tanto amor e romantismo, - porque essa verdade de amor e romantismo nasceu antes de tudo -, vivia, assim, pairando por sobre a face do nada. O silêncio, por exemplo, é tão antigo que gerou o mundo. A explosão que deu origem ao mundo foi uma explosão de silêncio. No tempo perfeito o silêncio era um soberano sábio de um reino próspero e alegre. Só depois veio a nomenclatura barulho, o orgulho - que é outra face do silêncio – o silêncio transvestido. O som é silêncio, o silêncio é silêncio, a luz é silêncio, o escuro também o é. O Amor é silêncio, o inimigo é silêncio, a felicidade é silêncio. Olha: o silêncio só é silêncio nele mesmo, é isso que tento, sofregamente dizer-te aqui. Tudo que existe, não existe – a ilusão é a única maneira que conheço de ser possível. O concreto é o abstrato materializado.
     Nasceu da mulher, chamada mulher, e do homem chamado macho, uma menina, e chamaram-na dor. Isabel Doe-se. E depois nasceu José (...) E tantas Marias, tantas Isabéis, Martas, tantos Antônios, Manasséis, Josuéis, Godofredos, Joãos(...) O mundo fora todo povoado. Chico amou a mulata mais negra do arraial – a verdade, e pensam que é mito, é que essa mulata era uma espécie de sereia: de um lado era negra como a noite, e do outro branca como a neve escarlate. Dela nasceram as civilizações, as raças. Até que chegou na minha tataravó primeira, depois passaram-se dois milênios na geração de tataravós, vieram as bisavós, e a minha avó: Senhora Condessa de Trento: A sinhá cafubense: Dona Severina Barroso I. Reinou oito gerações, e só morreu porque disse assim para a morte:
- Vamos, mate-me, antes que eu me arrependa e mande dar cabo d’ôcê.
E vieram sete virgens, sete cavaleiros, sete pétalas ao vento para assistir Dona Severina Barroso I, Vossa Alteza Real, dar a luz a Dona Maria Barroso I. O mundo parou por um milênios, e seus eixos gemeram na ferrugem do tempo. Foi assim que Dona Severina Barroso I pariu tudo que nossos olhos possam contemplar. Só deixou intacto o mistérios, as larvas, as pragas, e os espinhos das rosas: tudo isso nasceu sozinho, quando a vida era autônoma.
     Pariu. E morreu alegre, de parto. Dona Maria Barroso I foi a mais incompetente soberana da época, até que se apaixonou por caroço, um criolo sem vergonha, imundo, uma espécie de pirata da margem da estrada. Saqueando pobres miseráveis que mal tinha o que comer. Era verdade que, Dona Maria Barroso I, em sete dias amava perdidamente o criolo, mas o criolo era vivido, era do mundo.
     Numa noite de lua minguante estava Dona Maria Barroso I, em trajes reais a esperar o patife. Mandou suas cortesãs e damas de companhia procurar o homem. Chovia. Era os deuses revoltados. Mas a nova Condessa de Trento possuía a ampulheta do tempo, deixada do por sua mãe, Dona Severina Barroso I, minha avó. Conquistada por suas mãos femininas, das mãos macho dos deuses.   Quando o negro chegou, em seu cavalo branco, era tão negro o sujeito, que o cavalo parecia cavalgar a ermo, pelo escuro noturno. A virgem Condessa despiu-se com cio flamejante, com selvageria vadia e entregou-se ao criolo. Amaram-se debaixo de um pé de saboeiro a noite inteira. E quanto mais se amavam, quanto mais se comiam, quanto mais ele lhe penetrava a carne fria mais o tempo se danava, mas os ventos uivavam, mais os deuses se atormentavam. Foi uma desgraça, aquela noite, no Olimpo. Todos os deuses e principados celestes experimentaram o dia do desassossego.
     Quando a Condessa acordou estava sozinha. O capitão do mato a procurava com desespero. A encontrou desmaiada. Sangrando.
"Bem feito, cochicharam, distante as virgens camponesas."
A Condessa estava gravemente grávida de noves meses e um dia. Seu útero estava quente, sua pele parecia queimar no fogo do purgatório. Pariu: um menino, porque tinha corpo de menino. Mas não tinha sexo, nem face. Era um assexuado: de sonho, de vida, de sêmen. Era um assexuado até mesmo de ser assexuado. Nasceu já desidratado, falido. Nasceu já poeira – infecundo. Era um criolo de pele tão alva que ninguém podia contemplar sua face. Puxou a genética do pai.  A condessa o escondeu em casa, deu-lhe, por ordem dos deuses o nome de Caos. E Caos Barroso I, iria ser o mais conhecido imperador de todas as épocas. Quanto ao criolo, seu pai, contam os antigos que ele nunca existiu. Acredita-se que era o diabo. O filho, que era uma criatura miúda e sorridente, certa noite devorou sua mãe, e com cinco anos de idade ascendeu o trono. Nunca morreu, nunca foi visto desde seu nascimento. Acredita-se que tanto sua avó, a primeira soberana, e sua mãe, jamais existiram. Acreditam os profetas e poetas que ele mesmo gerou-se, ele mesmo se criou, se cria e se alimenta de sua própria carne. Acredita-se que tudo era caos. Tudo era a solidão virgem, desconhecida pelas florestas negras e espinhosas do tempo. Depois que emergiu ao trono tudo no mundo era violência, injustiça, revolta. Toda a existência entornou-se em silêncio e jamais houve tempo mais propício a liberdade de expressão e do dito ser dito. O imperador era infeliz por existir. E todas as virgens da época foram-lhe ofertadas, mas nem mesmo a preço de sangue inocente o mundo o pode adormecer, sereno, tranquilo, como toda criança que tem o direito de ser protegida em noite tempestiva. Ele chorava dia e noite, nada o acalentava, e tudo era o mais severo e frio silêncio. Por isso a colheita era miúda, não chovia, não havia festejo no mundo. Tudo era motivo pra choro.
     Mas haverá o dia em que um filho de Adão ser erguerá para destruir o ditador, esse dia nem os mais antigos, nem os deuses nem os demônios podem espreitar. É uma esperança dada aos desertores que, com coragem, abandonaram a guerrilha. Nesse dia o filho de Adão governará o mundo e dominará, em suas mãos humanas o Imperador fantasma. Será um dia de alarde, um tempo de suspiro – tempo de Paz. Tempo das prestações de conta: será esse o tempo do amor. Reza a lenda que apenas um filho de Adão, sincero e puro, diante do amor, poderá acalmar o tirano. Porque haverá o dia que o amor lhe será seu maior defeito: será a queda que o manterá cativo dos homens. Teme-se que, no dia em que os homens ascenderem ao trono, tudo aqui seja extinto. Um vazio de espírito, um silêncio tão falso que todas as línguas desejarão se calar. Calar-se não tem matrimônio algum com o silêncio, o silêncio e também o som. Calada a mente pensa e se pensa há o som sobrenatural do pensamento. Quisera eu, que o pensamento fosse silêncio. O silêncio resiste ao som, resite a si, se anula, se verga. O silêncio é a carne morta, e todo ser vivo, todo ser petrificado deve ter direito ao silêncio. Desejo de nascer para a vida simples, a morte da carne e o emergir da alma. No tempo do reinado dos homens será o tempo da indiferença imperar.

- Recife, 18 de janeiro de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2007.

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