16 de julho de 2012

ESSE É MEU CORPO: COMEI DE MIM.

    


     O padeiro amassava a massa com força e com as mãos nuas. Em seus dedos restavam vestígios da massa, pedaços de seu corpo. Com brutal violência, como quem come ardentemente o corpo desejado da mulher alheia, o padeiro executava com concentração sacra seu ofício. Ele amassava a massa com desprezo. Com sincero e paterno amor. Só faltava cuspir a massa. Rasgar-lhe o vestidinho de renda cheio de flores campestres que só se percebia de perto e que ela tinha ganhado de presente de natal. Nela ele exercia toda a sua violência, sua fúria masculina quando é incitado pelas curvas de uma mulher. Suas mãos gritavam em gritos selvagens a indiferença da vida. Depois de um amor paterno e calmo, voltou a odiá-la. Fez as pazes. Deixou seu suor cair na massa pálida e disforme: a massa estava fria, morta: tão morta quanto uma virgem morta. Ele e a massa eram um só depois que seu sêmen, escorrido de seu rosto, pingou na massa e a fecundou. Depois desse ato de violentar a massa e depositar em seu ventre seu sêmen, o padeiro jamais deixaria de ser padeiro. Nem voltaria a olhar para outra mulher além da massa que possua placidamente nua e pálida sobre o mármore. Cativa de seu homem. Ela sentiu-se mais humana que o padeiro. A massa que se transformaria numa meretriz, comida pelas bocas alheias, em fatias, tinha, depois de transar com o padeiro, petulância humana. Era orgulhosa, arrogante, prepotente. O padeiro amava agora a massa como uma amante, como uma meretriz que o conquistara com a quentura de seus quadris se movendo freneticamente sobre sua pélvis até que ele enlouquecido gozasse em seu ventre. Levava-lhe flores e depositava numa garrafa ao lado do balcão de mármore onde iria manipular com as mãos a massa até que esta atingisse, com grunhidos escandalosos, como gatos no cio no telhado, o orgasmo. O padeiro penetrou a massa com as mãos e rasgou-lhe a roupa branca encardida, rasgou-lhe a carne, rasgou até a face que ela ainda não possuía, a meros olhos. A face da massa era a própria massa deitada na chapa de mármore, nua, pálida – mulher. Ora envergonhada com a sua nudez, ora louca de excitação pelo padeiro. Quando ele chegava, a massa de esparramava sobre o mármore, e trêmula de desejo, como uma adolescente recém desvirginada e com fome de seu primeiro namoradinho, esperava pelas mãos do padeiro a manipular seu corpo. Mas houve um dia que o padeiro traiu gravemente a massa. Preparou o forno e depositou o corpo da massa, inocente, sobre a chapa de alumínio. A massa até sentia-se como uma mulher:
- Sim, é hoje. Hoje ele me levará em um piquenique. Hoje ele me levará para conhecer seus pais. Hoje ele me assumirá diante dos amigos e inimigos. Pensava a massa, e a felicidade fazia-lhe o estômago contorcer-se de alegria. O padeiro abriu o forno e depositou o corpo da massa no centro. Depositou com amargura, com respeito, com saudade, como quem deposita o corpo morto de sua amada. Se a massa tivesse face, teria naquele momento uma expressão rubra de horror. Mas o que mais iria doer no padeiro não era sua face apavorada. Seria sua cara de mulher traída. Mulher que amou até as últimas consequências da dedicação o seu homem. O padeiro virou o rosto e saiu da sala aos prantos. A massa assou e transformou-se num pão para a ceia de páscoa. Na noite em que serviram o corpo dela em uma bandeja de prata autêntica a massa que antes era fêmea, agora era um pão, másculo, viril. Tão musculoso quanto um búfalo velho. O fermento da vida deu-lhe órgãos genitais de homem. O padeiro escondeu-se atrás da cortina a olhar sua amada sendo cobiçada por outros homens. Sentiu tristeza, mais do que ódio. Sua amada sendo cobiçada pelos olhos excitados e cafajestes daqueles bárbaros ao redor da mesa. O padeiro sentiu-se excitado também, e reprovou-se, com asco. O homem mais bárbaro e que parecia o líder do bando ergueu o pão, como quem fazia uma prece e depositando-o de volta a mesa todos se lançaram sobre o corpo da massa e comeram-na com fome animal. Foi um verdadeiro estupro coletivo, a massa que ainda era ingênua e virgem, e que se guardou para ser desvirginada por seu amado e que agora a vida havia lhe transformado em macho foi morta pela fome sexual daqueles homens. O padeiro então juntou as migalhas aos prantos e fez um digno velório. Só ele conduziu o enterro. A cidade o condenava por ter permitido que fizessem aquela barbaridade contra a massa. Ele jamais voltou a ter paz, jamais amou outra mulher. E só manipulava a massa que seria o pão, com as mãos vestidas em luvas. Que era para não trair a memória de sua amada.

- Recife, 13 de julho de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2007.

14 de julho de 2012

MÃES DO GUETO.


No tempo que antecedia a existência um ponto negro pariu uma mulher, e deu-lhe o nome de mulher. Essa mulher vivia sozinha, triste, negra. Então o breu pensou – e depois haveria de arrepender-se por toda sua existência - que seria melhor dar-lhe uma companhia, e a fez cair em sono profundíssimo, assim nasceu o outro ser: deu-lhe útero, vagina macia, uma fome inesgotável de ser possuída e amada, e o breu deu-lhe o nome de macho. Enamoraram-se, na obrigação do amor, na escassez de escolhas. O tempo inteiro transavam: com os olhos, com o cheiro, com o sexo, com as arestas dos dedos e pés. Dormindo transavam, acordados transavam – não transando, transavam. E de tanto amor e romantismo, - porque essa verdade de amor e romantismo nasceu antes de tudo -, vivia, assim, pairando por sobre a face do nada. O silêncio, por exemplo, é tão antigo que gerou o mundo. A explosão que deu origem ao mundo foi uma explosão de silêncio. No tempo perfeito o silêncio era um soberano sábio de um reino próspero e alegre. Só depois veio a nomenclatura barulho, o orgulho - que é outra face do silêncio – o silêncio transvestido. O som é silêncio, o silêncio é silêncio, a luz é silêncio, o escuro também o é. O Amor é silêncio, o inimigo é silêncio, a felicidade é silêncio. Olha: o silêncio só é silêncio nele mesmo, é isso que tento, sofregamente dizer-te aqui. Tudo que existe, não existe – a ilusão é a única maneira que conheço de ser possível. O concreto é o abstrato materializado.
     Nasceu da mulher, chamada mulher, e do homem chamado macho, uma menina, e chamaram-na dor. Isabel Doe-se. E depois nasceu José (...) E tantas Marias, tantas Isabéis, Martas, tantos Antônios, Manasséis, Josuéis, Godofredos, Joãos(...) O mundo fora todo povoado. Chico amou a mulata mais negra do arraial – a verdade, e pensam que é mito, é que essa mulata era uma espécie de sereia: de um lado era negra como a noite, e do outro branca como a neve escarlate. Dela nasceram as civilizações, as raças. Até que chegou na minha tataravó primeira, depois passaram-se dois milênios na geração de tataravós, vieram as bisavós, e a minha avó: Senhora Condessa de Trento: A sinhá cafubense: Dona Severina Barroso I. Reinou oito gerações, e só morreu porque disse assim para a morte:
- Vamos, mate-me, antes que eu me arrependa e mande dar cabo d’ôcê.
E vieram sete virgens, sete cavaleiros, sete pétalas ao vento para assistir Dona Severina Barroso I, Vossa Alteza Real, dar a luz a Dona Maria Barroso I. O mundo parou por um milênios, e seus eixos gemeram na ferrugem do tempo. Foi assim que Dona Severina Barroso I pariu tudo que nossos olhos possam contemplar. Só deixou intacto o mistérios, as larvas, as pragas, e os espinhos das rosas: tudo isso nasceu sozinho, quando a vida era autônoma.
     Pariu. E morreu alegre, de parto. Dona Maria Barroso I foi a mais incompetente soberana da época, até que se apaixonou por caroço, um criolo sem vergonha, imundo, uma espécie de pirata da margem da estrada. Saqueando pobres miseráveis que mal tinha o que comer. Era verdade que, Dona Maria Barroso I, em sete dias amava perdidamente o criolo, mas o criolo era vivido, era do mundo.
     Numa noite de lua minguante estava Dona Maria Barroso I, em trajes reais a esperar o patife. Mandou suas cortesãs e damas de companhia procurar o homem. Chovia. Era os deuses revoltados. Mas a nova Condessa de Trento possuía a ampulheta do tempo, deixada do por sua mãe, Dona Severina Barroso I, minha avó. Conquistada por suas mãos femininas, das mãos macho dos deuses.   Quando o negro chegou, em seu cavalo branco, era tão negro o sujeito, que o cavalo parecia cavalgar a ermo, pelo escuro noturno. A virgem Condessa despiu-se com cio flamejante, com selvageria vadia e entregou-se ao criolo. Amaram-se debaixo de um pé de saboeiro a noite inteira. E quanto mais se amavam, quanto mais se comiam, quanto mais ele lhe penetrava a carne fria mais o tempo se danava, mas os ventos uivavam, mais os deuses se atormentavam. Foi uma desgraça, aquela noite, no Olimpo. Todos os deuses e principados celestes experimentaram o dia do desassossego.
     Quando a Condessa acordou estava sozinha. O capitão do mato a procurava com desespero. A encontrou desmaiada. Sangrando.
"Bem feito, cochicharam, distante as virgens camponesas."
A Condessa estava gravemente grávida de noves meses e um dia. Seu útero estava quente, sua pele parecia queimar no fogo do purgatório. Pariu: um menino, porque tinha corpo de menino. Mas não tinha sexo, nem face. Era um assexuado: de sonho, de vida, de sêmen. Era um assexuado até mesmo de ser assexuado. Nasceu já desidratado, falido. Nasceu já poeira – infecundo. Era um criolo de pele tão alva que ninguém podia contemplar sua face. Puxou a genética do pai.  A condessa o escondeu em casa, deu-lhe, por ordem dos deuses o nome de Caos. E Caos Barroso I, iria ser o mais conhecido imperador de todas as épocas. Quanto ao criolo, seu pai, contam os antigos que ele nunca existiu. Acredita-se que era o diabo. O filho, que era uma criatura miúda e sorridente, certa noite devorou sua mãe, e com cinco anos de idade ascendeu o trono. Nunca morreu, nunca foi visto desde seu nascimento. Acredita-se que tanto sua avó, a primeira soberana, e sua mãe, jamais existiram. Acreditam os profetas e poetas que ele mesmo gerou-se, ele mesmo se criou, se cria e se alimenta de sua própria carne. Acredita-se que tudo era caos. Tudo era a solidão virgem, desconhecida pelas florestas negras e espinhosas do tempo. Depois que emergiu ao trono tudo no mundo era violência, injustiça, revolta. Toda a existência entornou-se em silêncio e jamais houve tempo mais propício a liberdade de expressão e do dito ser dito. O imperador era infeliz por existir. E todas as virgens da época foram-lhe ofertadas, mas nem mesmo a preço de sangue inocente o mundo o pode adormecer, sereno, tranquilo, como toda criança que tem o direito de ser protegida em noite tempestiva. Ele chorava dia e noite, nada o acalentava, e tudo era o mais severo e frio silêncio. Por isso a colheita era miúda, não chovia, não havia festejo no mundo. Tudo era motivo pra choro.
     Mas haverá o dia em que um filho de Adão ser erguerá para destruir o ditador, esse dia nem os mais antigos, nem os deuses nem os demônios podem espreitar. É uma esperança dada aos desertores que, com coragem, abandonaram a guerrilha. Nesse dia o filho de Adão governará o mundo e dominará, em suas mãos humanas o Imperador fantasma. Será um dia de alarde, um tempo de suspiro – tempo de Paz. Tempo das prestações de conta: será esse o tempo do amor. Reza a lenda que apenas um filho de Adão, sincero e puro, diante do amor, poderá acalmar o tirano. Porque haverá o dia que o amor lhe será seu maior defeito: será a queda que o manterá cativo dos homens. Teme-se que, no dia em que os homens ascenderem ao trono, tudo aqui seja extinto. Um vazio de espírito, um silêncio tão falso que todas as línguas desejarão se calar. Calar-se não tem matrimônio algum com o silêncio, o silêncio e também o som. Calada a mente pensa e se pensa há o som sobrenatural do pensamento. Quisera eu, que o pensamento fosse silêncio. O silêncio resiste ao som, resite a si, se anula, se verga. O silêncio é a carne morta, e todo ser vivo, todo ser petrificado deve ter direito ao silêncio. Desejo de nascer para a vida simples, a morte da carne e o emergir da alma. No tempo do reinado dos homens será o tempo da indiferença imperar.

- Recife, 18 de janeiro de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2007.

6 de julho de 2012

ABORTO ESPONTANEO.


 

     Então quando estamos doce, vem a vida e nos obriga adocicar mais. Tempo de nós só restar o sulco, as vísceras. O coração batendo entre mãos vazias. A província com suas casas corrompidas pelo fantasmagórico vivo. E na voz trazemos a certeza tênue como se estivéssemos trêmulos de pavor de ter que justificar-nos de um crime que não cometemos nem em pensamentos. Por que não nos acreditarão o discurso. Nós que, dia e noite vivemos nas tavernas a fumar cigarros vagabundos e beber uísque barato. E essa verdade de ser tênue é a injustiça materializada. Chega o dia que tudo é peso e plenitude, e nossa alma, já livre, senta a ribeirinha para descansar a carne que lhe pesa a existência: tempo de senzala e regozijo do chicote sobre nossas costas negras, ainda que de pele alvíssima. Chega o tempo que todo navio é negreiro.
      Quando acreditamos que estamos mortos, vem a vida e nos mata mais um pouco. Os degraus ao subsolo que pensávamos - com aleluia - termos descido todos, ainda restam alguns. Tempo em que as mistificações são intoleráveis. Tempo em que nunca atingimos o topo do buraco negro, e o topo, nesse abismo é, senão, o chão. Caímos dia e noite e com isso vêm os meses, as estações, os anos, os séculos e milênios e entornamos a ser fetos flutuando na bolsa uterina da primeira mulher, aquela que pariu o mundo e o caos, porque até o caos sendo deus, teve mãe com tetas doces e abençoadas donde ele podia, com dedicação, sugar o sangue que se vertia no leite da vida. Tempo em que a verdade está face a face com a verdade. Quando pensamos que, enfim, o fim chegou, tudo recomeça sem nos consultar, a vida nos é uma vasta indiferença, somos o servo, ela a condessa em sua roupagem de gala.
     Ainda resta um pouco de verde, descobrimos. E descobrimos, como quem nasce agora, como quem é um broto de milho rasgando o cerne da terra que a vida é plácida e possível: nós somos vis e urgentes. Resta ainda sumo a ser extraído. Dor nas costas para ser afagada. Resta o sacrilégio do óleo Santo na moringa... E quando ousamos nos perguntar: Até quando? A vida muda os ventos, os moinhos, os faróis, as ondas, os navios... a vida se muda para os Alpes e não nos deixa nem bilhete nem um bocado de pão sobre a mesa: a vida se anula. Se abandona.
     Chega o tempo em que o riso é puro sangue, raio em fúria. O véu da ignorância é rasgado e já podemos compreender os segredos das retinas alheia. Aliás, o alheio é completamente nós. Há de chegar o tempo em que atingiremos o silêncio porque já não importa falar: tempo das chagas sanadas, tempo do humano e os furacões se alinharem. Haverá de chegar o dia em que nada saberemos, nada diremos, nada sentiremos: tempo da verdade única: tempo em que atingiremos a décima composição, e tudo isso que é terra e injustiça, haverá de ser a nova Jerusalém. Haverá o tempo, tempo de minha inexistência, de que aqui não habitarei mais: haverá o tempo em que os extraterrestres contarão histórias de mim a seus filhos, e lá num futuro imaginado eu subirei ao trono de meus reinos encantados. Haverá dia e hora em que o tempo não será mais tempo, não será coisa, não será... Tempo de gestação, tempo de colheita: tempo de a vida abandonar seu significado para assumir-se. Tempo em que o preconceito não diminuirá a vida. Haverá o tempo em que direi, enfim, e nesse tempo me confundirei com o vento: tempo de camuflagem onde a vida pode ser possível sem medo. Haverá de chegar o dia em que seremos todos híbridos, não existirá raça pura, tudo será um misticismo sem fim.


- Recife, 06 de julho de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2007.

5 de julho de 2012

Insuficiência respiratória.

Desejo começar esse falatório pedindo perdão. No perdão me livro do sangue da vítima. Torno-me, em horas de descuidos: leve. É tudo muito as pressas e urgente. O perdão me é a mais válida manipulação de dorso, de mim para mim. No perdão sou o canalha com adorno de cavalheiro. E eis que hoje amanheci insuportável, como a vida é impossível: nada comi, nem banho tomei. Dias de completo hiatos e invalidez. Tenho pernas, mas para que me servem pernas e braços? Eu quero a face dos anjos, eu quero, quero, quero e lanço-me ao chão em convulsão existencial... No perdão eu sento-me como uma moça a mesa, a tarde, para tomar o chá da manhã. Espero atingir a loucura: deixar de lembrar-me de mim e não reconhecer minha face na multidão. Tenho um caso romanesco com o perdão, um amor incestuoso – sim, porque o amor agora só me é útil ser for fora dessa concepção comum do amor, por exemplo, fui com Gregório ao cinema, na semana passada, passei quase duas horas pra escolher o filme porque três dos filmes eram romances (aquele enfadonho começo, meio e fim... Ah, vá para o diabo que lhe carregue com tanta mesmice) e o quarto era infantil, era tão obvio, se eu não suporto filmes de romance, ficaria, de cara, com o infantil. Mas tudo isso não é uma questão de escolhas, antes, é uma questão de menopausa, sim, eu serei o primeiro homem a ter menopausa, e tudo isso, sim, meu senhor, é uma questão medieval. Estou chegando ao fim, estou me gastando como a última porção de qualquer porção que se dê o luxo de ser gasta. Estou ficando apavorado diante da vida, de um legume, de uma lesma e admitir isso tem me tornado livre, ai, sinto um friozinho na barriga e meus olhos lacrimejam agora: reconheço que estou chegando ao tempo das confissões. Eu entendo já, o amor incestuoso, mas quero distância dessa blasfêmia, dessa invenção do diabo porque eu sinto asco e vergonha de falar sobre esse tipo de perversão. Que monstro nasci pra ser? É com louvor e encanto infantil que vivo para atingir a resposta. Minha vida é uma fragmentação sem nexo: ora sei que sou sinhá cantando para acalmar o quilombo, ora sou o capitão do mato perseguindo o quilombo, e desgraçadamente, há dias que sou o que? Eu Sou, como disse Deus a Moisés.
- Vai Moisés, e se te perguntarem quem te enviou dizeis que foi o Eu Sou quem te enviou.
Compreendo sem enfado o incompreensível. Para que fui gerado? Qual o propósito de fazer dum mendigo rei se tantos reis esperam para violentar a coroa?
     É um perdão fingido, claro – quem és tu para poder perdoar-me? Pedindo perdão, retoricamente, só assim estarei tranquilo perante a justificação da promissória não quitada porque alegarei que a ponte que une a fazenda onde estou e a cidade ruiu – mas que imensa e descabida mentira! Em plena seca? Tudo invenção desse meu corpo esquizofrênico e dessa minha mente doentia de vontades. Eu repito, como num mantra, para mim mesmo: você tem que tomar jeito, meu caro. Dia desses chega a casa dos trinta e ainda está morando com a mamãe. Ah, céus, eu tinha que me lembrar disso justamente agora? Sou bem capaz de pagar para derrubarem a ponte para poder não ir ao banco. Não ir com justificação. Tenho um amor revolto pela justificação.
     Compreendo quando a mamãe tem medo de mim na minha existência! Eu nasci para matar meu pai de decepção porque esse velho discurso de que: Menino, não faz tatuagem! Menino, vai a igreja aos domingos! Filho, não use drogas! Eu quero dormir um pouco sem esse falatório, será que posso? Compreendo, compreendo! Compreendo: minha mãe nasceu do meu útero, eu não tenho nem mãe nem pai – nasci já responsável pelo adulto.
     E sair da casa da mamãe não é um requisito para atingir a paz, eu não sou dado a paz. Ai, pagarei juros para ficar em casa enrolado e comendo todas as porcarias só por maldade contra meu corpo quase obeso. Mas eu preciso mesmo é da justificação. É lembro-me agora, na justificação o falatório cessa: o outro se esquece de mim, me abandona, e eis tudo que preciso, um pouco de abandono, de morrer de frio, que é para sentir o silêncio devorando meu espírito e alma até possuí-lo por completo.
     Saberão que é mentira, minha confissão com os olhos empapados d’agua: estou enlouquecido para comer banana, bem madurinha, frita na manteiga de cabra que só Severina Barroso sabia fazer com aquele jeito desmantelado que só ela tinha quando estava na cozinha preparando o jantar. Comer, comer até vomitar a comida! Eu minto, é o que mais sei fazer na vida – e escrevo agora, nessa tarde tediosa como quem reza o terço por obrigação. Estou quase engolindo o papel, de tanto ódio. Ai, ai, até mesmo a literatura me é odiosa, hoje. Quero a morte de um atropelamento, meu sangue escorrendo por entre os paralelepípedos. Quero a violência, do desejo de sangue, saciada em mim. O acordo com o banco já fora feito e estou até com o dinheiro aqui, na caixa de guardar tralhas, de madeira, que Gregório me presenteou no aniversário do ano passado. Por falar em Gregório, onde andará o patife por quem meu coração para e meus joelhos travam?
     Ontem uma amiga muito querida me ligou. (querida até minutos antes daquela ligação). Fui pego de surpresa, desprotegido como se meu bojo estivesse a míngua. Ligou-me para cobrar cem pratas que lhe devo a seis meses: tenho a sensação que nossa amizade acabou. Odeio ser cobrado. Isso é literal em mim. Foi assim o falatório:
- Benjamim, como você está meu querido? Perguntou-me a fingida.
- Vou bem, Fátima. Pode ser direta, eu sei que você me ligou para cobrar as cem pratas que me emprestou, poupe-me desses protocolos. - Vociferei com ódio veemente.
- Pensei que você tinha esquecido, meu caro. Ela rebateu com um leve peso odioso na voz.
- E eu esqueço de alguma coisa nessa vida, Fátima? Em meu pensamento havia a espreita de que ela estava me ligando por pura maldade e antipatia.
- Desculpe-me, Ben, mas preciso...
A interrompi antes que ela terminasse o discurso medíocre e fora de uso.
- Passe-me sua conta, querida. Falei com a mais falsa e venenosa ternura.
Ela passou-me e nos despedimos como dois amantes: um selinho, um abraço e sem olhares pelas costas. Sim, eu sei, foi o fim de uma longa amizade e eu não sentirei falta dela. É, de fato, estou no tempo das bipolaridades. Tempo de não constrangimento. Tempo de decompor-me sem está morto.
     Eu espero, mas nesse caso, em mim, as esperas são o próprio ato de esperar – nada me causará decepção, nada me causará surpresa, nem risinho morno. Sou alguém que come por hábito, visto que não tenho mais fome de nada. Nada espero como propósito. Tudo: a flor e a larva vulcânica tem a semelhança de ser o mesmo propósito. Escrevo com transparência, agora. Escrevo água tentando atingir o negro. Escrevo como quem estanca de si uma hemorragia que sabe que lhe é fatal e ainda assim, em desespero tenta, a custo da vida, estancar o sangue. Ontem sonhei que uma serpente me perseguia, não houve susto, depois foi minha vez de persegui-la e ela morreu de taquicardia. O grito e o afago é em mim tem o mesmo susto, ou não me causa horror nenhum. Penso que o dia do sepultamento de uma pessoa dar-se no tempo em que ela não tem mais horror a vida. Sou um iceberg milenar, nada me deslocará donde flutuo, nessa água viscosa quase parecida com o tempo do útero, tempo de boa colheita e bem-aventuranças. Estou a beira do precipício, a beira de buraco negro e inexistencial que é minha alma: estou sempre no ato, no ladrar, no latejar. Conselhos e maldições não me atingem mais. Eu mesmo não sei em qual dessas mascaras perdi minha face. Eu começo bem, mas sempre mínguo para o trágico. Desejo lavar minhas mãos desse sangue inocente cujo crime nenhum cometi, mas esse sangue só sai em solução ácida, limpa-se, mas leva consigo minha carne e minha identidade. 




- Recife, 30 de outubro de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2010.