5 de julho de 2012

Insuficiência respiratória.

Desejo começar esse falatório pedindo perdão. No perdão me livro do sangue da vítima. Torno-me, em horas de descuidos: leve. É tudo muito as pressas e urgente. O perdão me é a mais válida manipulação de dorso, de mim para mim. No perdão sou o canalha com adorno de cavalheiro. E eis que hoje amanheci insuportável, como a vida é impossível: nada comi, nem banho tomei. Dias de completo hiatos e invalidez. Tenho pernas, mas para que me servem pernas e braços? Eu quero a face dos anjos, eu quero, quero, quero e lanço-me ao chão em convulsão existencial... No perdão eu sento-me como uma moça a mesa, a tarde, para tomar o chá da manhã. Espero atingir a loucura: deixar de lembrar-me de mim e não reconhecer minha face na multidão. Tenho um caso romanesco com o perdão, um amor incestuoso – sim, porque o amor agora só me é útil ser for fora dessa concepção comum do amor, por exemplo, fui com Gregório ao cinema, na semana passada, passei quase duas horas pra escolher o filme porque três dos filmes eram romances (aquele enfadonho começo, meio e fim... Ah, vá para o diabo que lhe carregue com tanta mesmice) e o quarto era infantil, era tão obvio, se eu não suporto filmes de romance, ficaria, de cara, com o infantil. Mas tudo isso não é uma questão de escolhas, antes, é uma questão de menopausa, sim, eu serei o primeiro homem a ter menopausa, e tudo isso, sim, meu senhor, é uma questão medieval. Estou chegando ao fim, estou me gastando como a última porção de qualquer porção que se dê o luxo de ser gasta. Estou ficando apavorado diante da vida, de um legume, de uma lesma e admitir isso tem me tornado livre, ai, sinto um friozinho na barriga e meus olhos lacrimejam agora: reconheço que estou chegando ao tempo das confissões. Eu entendo já, o amor incestuoso, mas quero distância dessa blasfêmia, dessa invenção do diabo porque eu sinto asco e vergonha de falar sobre esse tipo de perversão. Que monstro nasci pra ser? É com louvor e encanto infantil que vivo para atingir a resposta. Minha vida é uma fragmentação sem nexo: ora sei que sou sinhá cantando para acalmar o quilombo, ora sou o capitão do mato perseguindo o quilombo, e desgraçadamente, há dias que sou o que? Eu Sou, como disse Deus a Moisés.
- Vai Moisés, e se te perguntarem quem te enviou dizeis que foi o Eu Sou quem te enviou.
Compreendo sem enfado o incompreensível. Para que fui gerado? Qual o propósito de fazer dum mendigo rei se tantos reis esperam para violentar a coroa?
     É um perdão fingido, claro – quem és tu para poder perdoar-me? Pedindo perdão, retoricamente, só assim estarei tranquilo perante a justificação da promissória não quitada porque alegarei que a ponte que une a fazenda onde estou e a cidade ruiu – mas que imensa e descabida mentira! Em plena seca? Tudo invenção desse meu corpo esquizofrênico e dessa minha mente doentia de vontades. Eu repito, como num mantra, para mim mesmo: você tem que tomar jeito, meu caro. Dia desses chega a casa dos trinta e ainda está morando com a mamãe. Ah, céus, eu tinha que me lembrar disso justamente agora? Sou bem capaz de pagar para derrubarem a ponte para poder não ir ao banco. Não ir com justificação. Tenho um amor revolto pela justificação.
     Compreendo quando a mamãe tem medo de mim na minha existência! Eu nasci para matar meu pai de decepção porque esse velho discurso de que: Menino, não faz tatuagem! Menino, vai a igreja aos domingos! Filho, não use drogas! Eu quero dormir um pouco sem esse falatório, será que posso? Compreendo, compreendo! Compreendo: minha mãe nasceu do meu útero, eu não tenho nem mãe nem pai – nasci já responsável pelo adulto.
     E sair da casa da mamãe não é um requisito para atingir a paz, eu não sou dado a paz. Ai, pagarei juros para ficar em casa enrolado e comendo todas as porcarias só por maldade contra meu corpo quase obeso. Mas eu preciso mesmo é da justificação. É lembro-me agora, na justificação o falatório cessa: o outro se esquece de mim, me abandona, e eis tudo que preciso, um pouco de abandono, de morrer de frio, que é para sentir o silêncio devorando meu espírito e alma até possuí-lo por completo.
     Saberão que é mentira, minha confissão com os olhos empapados d’agua: estou enlouquecido para comer banana, bem madurinha, frita na manteiga de cabra que só Severina Barroso sabia fazer com aquele jeito desmantelado que só ela tinha quando estava na cozinha preparando o jantar. Comer, comer até vomitar a comida! Eu minto, é o que mais sei fazer na vida – e escrevo agora, nessa tarde tediosa como quem reza o terço por obrigação. Estou quase engolindo o papel, de tanto ódio. Ai, ai, até mesmo a literatura me é odiosa, hoje. Quero a morte de um atropelamento, meu sangue escorrendo por entre os paralelepípedos. Quero a violência, do desejo de sangue, saciada em mim. O acordo com o banco já fora feito e estou até com o dinheiro aqui, na caixa de guardar tralhas, de madeira, que Gregório me presenteou no aniversário do ano passado. Por falar em Gregório, onde andará o patife por quem meu coração para e meus joelhos travam?
     Ontem uma amiga muito querida me ligou. (querida até minutos antes daquela ligação). Fui pego de surpresa, desprotegido como se meu bojo estivesse a míngua. Ligou-me para cobrar cem pratas que lhe devo a seis meses: tenho a sensação que nossa amizade acabou. Odeio ser cobrado. Isso é literal em mim. Foi assim o falatório:
- Benjamim, como você está meu querido? Perguntou-me a fingida.
- Vou bem, Fátima. Pode ser direta, eu sei que você me ligou para cobrar as cem pratas que me emprestou, poupe-me desses protocolos. - Vociferei com ódio veemente.
- Pensei que você tinha esquecido, meu caro. Ela rebateu com um leve peso odioso na voz.
- E eu esqueço de alguma coisa nessa vida, Fátima? Em meu pensamento havia a espreita de que ela estava me ligando por pura maldade e antipatia.
- Desculpe-me, Ben, mas preciso...
A interrompi antes que ela terminasse o discurso medíocre e fora de uso.
- Passe-me sua conta, querida. Falei com a mais falsa e venenosa ternura.
Ela passou-me e nos despedimos como dois amantes: um selinho, um abraço e sem olhares pelas costas. Sim, eu sei, foi o fim de uma longa amizade e eu não sentirei falta dela. É, de fato, estou no tempo das bipolaridades. Tempo de não constrangimento. Tempo de decompor-me sem está morto.
     Eu espero, mas nesse caso, em mim, as esperas são o próprio ato de esperar – nada me causará decepção, nada me causará surpresa, nem risinho morno. Sou alguém que come por hábito, visto que não tenho mais fome de nada. Nada espero como propósito. Tudo: a flor e a larva vulcânica tem a semelhança de ser o mesmo propósito. Escrevo com transparência, agora. Escrevo água tentando atingir o negro. Escrevo como quem estanca de si uma hemorragia que sabe que lhe é fatal e ainda assim, em desespero tenta, a custo da vida, estancar o sangue. Ontem sonhei que uma serpente me perseguia, não houve susto, depois foi minha vez de persegui-la e ela morreu de taquicardia. O grito e o afago é em mim tem o mesmo susto, ou não me causa horror nenhum. Penso que o dia do sepultamento de uma pessoa dar-se no tempo em que ela não tem mais horror a vida. Sou um iceberg milenar, nada me deslocará donde flutuo, nessa água viscosa quase parecida com o tempo do útero, tempo de boa colheita e bem-aventuranças. Estou a beira do precipício, a beira de buraco negro e inexistencial que é minha alma: estou sempre no ato, no ladrar, no latejar. Conselhos e maldições não me atingem mais. Eu mesmo não sei em qual dessas mascaras perdi minha face. Eu começo bem, mas sempre mínguo para o trágico. Desejo lavar minhas mãos desse sangue inocente cujo crime nenhum cometi, mas esse sangue só sai em solução ácida, limpa-se, mas leva consigo minha carne e minha identidade. 




- Recife, 30 de outubro de 2012. Todos os direitos reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana - 10 de agosto de 2010.
    

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