Desejo começar esse falatório pedindo perdão. No perdão
me livro do sangue da vítima. Torno-me, em horas de descuidos: leve. É tudo
muito as pressas e urgente. O perdão me é a mais válida manipulação de dorso,
de mim para mim. No perdão sou o canalha com adorno de cavalheiro. E eis que
hoje amanheci insuportável, como a vida é impossível: nada comi, nem banho
tomei. Dias de completo hiatos e invalidez.
Tenho pernas, mas para que me servem pernas e braços? Eu quero a face dos
anjos, eu quero, quero, quero e lanço-me ao chão em convulsão existencial... No
perdão eu sento-me como uma moça a mesa, a tarde, para tomar o chá da manhã. Espero
atingir a loucura: deixar de lembrar-me de mim e não reconhecer minha face na
multidão. Tenho um caso romanesco com o perdão, um amor incestuoso – sim,
porque o amor agora só me é útil ser for fora dessa concepção comum do amor,
por exemplo, fui com Gregório ao cinema, na semana passada, passei quase duas
horas pra escolher o filme porque três dos filmes eram romances (aquele
enfadonho começo, meio e fim... Ah, vá para o diabo que lhe carregue com tanta
mesmice) e o quarto era infantil, era tão obvio, se eu não suporto filmes de
romance, ficaria, de cara, com o infantil. Mas tudo isso não é uma questão de
escolhas, antes, é uma questão de menopausa, sim, eu serei o primeiro homem a
ter menopausa, e tudo isso, sim, meu senhor, é uma questão medieval. Estou
chegando ao fim, estou me gastando como a última porção de qualquer porção que
se dê o luxo de ser gasta. Estou ficando apavorado diante da vida, de um
legume, de uma lesma e admitir isso tem me tornado livre, ai, sinto um
friozinho na barriga e meus olhos lacrimejam agora: reconheço que estou
chegando ao tempo das confissões. Eu entendo já, o amor incestuoso, mas quero
distância dessa blasfêmia, dessa invenção do diabo porque eu sinto asco e
vergonha de falar sobre esse tipo de perversão. Que monstro nasci pra ser? É
com louvor e encanto infantil que vivo para atingir a resposta. Minha vida é
uma fragmentação sem nexo: ora sei que sou sinhá cantando para acalmar o
quilombo, ora sou o capitão do mato perseguindo o quilombo, e desgraçadamente,
há dias que sou o que? Eu Sou, como disse Deus a Moisés.
- Vai Moisés, e se te perguntarem quem te enviou dizeis que foi o Eu Sou quem
te enviou.
Compreendo sem enfado o incompreensível. Para que fui gerado? Qual o propósito
de fazer dum mendigo rei se tantos reis esperam para violentar a coroa?
É um perdão fingido, claro – quem és
tu para poder perdoar-me? Pedindo perdão, retoricamente, só assim estarei
tranquilo perante a justificação da promissória não quitada porque alegarei que
a ponte que une a fazenda onde estou e a cidade ruiu – mas que imensa e descabida
mentira! Em plena seca? Tudo invenção desse meu corpo esquizofrênico e dessa
minha mente doentia de vontades. Eu repito, como num mantra, para mim mesmo:
você tem que tomar jeito, meu caro. Dia desses chega a casa dos trinta e ainda
está morando com a mamãe. Ah, céus, eu tinha que me lembrar disso justamente
agora? Sou bem capaz de pagar para derrubarem a ponte para poder não ir ao
banco. Não ir com justificação. Tenho um amor revolto pela justificação.
Compreendo quando a mamãe tem medo
de mim na minha existência! Eu nasci para matar meu pai de decepção porque esse
velho discurso de que: Menino, não faz tatuagem! Menino, vai a igreja aos domingos!
Filho, não use drogas! Eu quero dormir um pouco sem esse falatório, será que
posso? Compreendo, compreendo! Compreendo: minha mãe nasceu do meu útero, eu
não tenho nem mãe nem pai – nasci já responsável pelo adulto.
E sair da casa da mamãe não é um requisito
para atingir a paz, eu não sou dado a paz. Ai, pagarei juros para ficar em casa
enrolado e comendo todas as porcarias só por maldade contra meu corpo quase
obeso. Mas eu preciso mesmo é da justificação. É lembro-me agora, na
justificação o falatório cessa: o outro se esquece de mim, me abandona, e eis
tudo que preciso, um pouco de abandono, de morrer de frio, que é para sentir o
silêncio devorando meu espírito e alma até possuí-lo por completo.
Saberão que é mentira, minha confissão
com os olhos empapados d’agua: estou enlouquecido para comer banana, bem
madurinha, frita na manteiga de cabra que só Severina Barroso sabia fazer com
aquele jeito desmantelado que só ela tinha quando estava na cozinha preparando
o jantar. Comer, comer até vomitar a comida! Eu minto, é o que mais sei fazer
na vida – e escrevo agora, nessa tarde tediosa como quem reza o terço por
obrigação. Estou quase engolindo o papel, de tanto ódio. Ai, ai, até mesmo a
literatura me é odiosa, hoje. Quero a morte de um atropelamento, meu sangue
escorrendo por entre os paralelepípedos. Quero a violência, do desejo de
sangue, saciada em mim. O acordo com o banco já fora feito e estou até com o
dinheiro aqui, na caixa de guardar tralhas, de madeira, que Gregório me
presenteou no aniversário do ano passado. Por falar em Gregório, onde andará o
patife por quem meu coração para e meus joelhos travam?
Ontem uma amiga muito querida me
ligou. (querida até minutos antes daquela ligação). Fui pego de surpresa,
desprotegido como se meu bojo estivesse a míngua. Ligou-me para cobrar cem
pratas que lhe devo a seis meses: tenho a sensação que nossa amizade acabou.
Odeio ser cobrado. Isso é literal em mim. Foi assim o falatório:
- Benjamim, como você está meu querido? Perguntou-me a fingida.
- Vou bem, Fátima. Pode ser direta, eu sei que você me ligou para cobrar as cem
pratas que me emprestou, poupe-me desses protocolos. - Vociferei com ódio
veemente.
- Pensei que você tinha esquecido, meu caro. Ela rebateu com um leve peso
odioso na voz.
- E eu esqueço de alguma coisa nessa vida, Fátima? Em meu pensamento havia a
espreita de que ela estava me ligando por pura maldade e antipatia.
- Desculpe-me, Ben, mas preciso...
A interrompi antes que ela terminasse o discurso medíocre e fora de uso.
- Passe-me sua conta, querida. Falei com a mais falsa e venenosa ternura.
Ela passou-me e nos despedimos como dois amantes: um selinho, um abraço e sem
olhares pelas costas. Sim, eu sei, foi o fim de uma longa amizade e eu não
sentirei falta dela. É, de fato, estou no tempo das bipolaridades. Tempo de não
constrangimento. Tempo de decompor-me sem está morto.
Eu espero, mas nesse caso, em mim,
as esperas são o próprio ato de esperar – nada me causará decepção, nada me
causará surpresa, nem risinho morno. Sou alguém que come por hábito, visto que
não tenho mais fome de nada. Nada espero como propósito. Tudo: a flor e a larva
vulcânica tem a semelhança de ser o mesmo propósito. Escrevo com transparência,
agora. Escrevo água tentando atingir o negro. Escrevo como quem estanca de si
uma hemorragia que sabe que lhe é fatal e ainda assim, em desespero tenta, a
custo da vida, estancar o sangue. Ontem sonhei que uma serpente me perseguia,
não houve susto, depois foi minha vez de persegui-la e ela morreu de
taquicardia. O grito e o afago é em mim tem o mesmo susto, ou não me causa
horror nenhum. Penso que o dia do sepultamento de uma pessoa dar-se no tempo em
que ela não tem mais horror a vida. Sou um iceberg milenar, nada me deslocará
donde flutuo, nessa água viscosa quase parecida com o tempo do útero, tempo de
boa colheita e bem-aventuranças. Estou a beira do precipício, a beira de buraco
negro e inexistencial que é minha alma: estou sempre no ato, no ladrar, no
latejar. Conselhos e maldições não me atingem mais. Eu mesmo não sei em qual
dessas mascaras perdi minha face. Eu começo bem, mas sempre mínguo para o
trágico. Desejo lavar minhas mãos desse sangue inocente cujo crime nenhum
cometi, mas esse sangue só sai em solução ácida, limpa-se, mas leva consigo
minha carne e minha identidade.
- Recife, 30 de outubro de 2012. Todos os direitos
reservados a EMPORIO DAS IDEIAS EDITORIAL LTDA. Oficina de ideias, Copacabana -
10 de agosto de 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário